domingo, 22 de novembro de 2015

CORRUPÇÃO PASSIVA E CORRUPÇÃO ATIVA




A Administração Pública compreende, em sua acepção lata, a atividade desempenhada pelo Estado visando à consecução de seus fins. Engloba, dessa forma, tanto os atos praticados na esfera do Poder Executivo, quanto do Legislativo, Judiciário, Ministério Público e entes da Administração Pública indireta (autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista).

Nesse quadro, atentou o legislador penal, reservar todo o Título XI do Código Penal, para as infrações que atentam contra o correto funcionamento do aparato estatal, seja no âmbito das relações do Estado com o indivíduo, seja nas relações do ente público com os seus servidores. Dentre esses crimes contra a Administração Pública, destacam-se dois, quais sejam, a corrupção ativa e a corrupção passiva, os quais, muitas vezes, pela constante divulgação na mídia, são confundidos. Busca-se, portanto, nesses breves comentários, diferenciá-los.

Quanto à corrupção passiva, tem-se que é um crime praticado contra a administração pública, tipificado no artigo 317 do Código Penal, tendo como peculiaridade que somente o funcionário público pode ser sujeito ativo. O tipo penal em tela dispõe o seguinte: “Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente,  ainda  que  fora  da  função,  ou  antes  de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”.

Dessa forma, as ações nucleares do tipo são: a) solicitar (pedir, requerer), receber (obter, entrar na posse ou detenção) e aceitar (concordar, anuir). Na primeira conduta, a iniciativa é do funcionário, ao passo que nas outras, do particular, o qual figura como corruptor e responde por corrupção ativa. A solicitação da vantagem indevida deve guardar relação com a função pública, em que pese não precisar, o autor, estar em exercício. Haverá o delito, portanto, ainda que o agente se encontre licenciado, em férias ou não tenha assumido o cargo. É fundamental, porém, que o sujeito ativo possa ser considerado funcionário público à luz do artigo 327 do Código Penal.

O tipo penal visa que o funcionário público sofra retaliação e não chegue a se beneficiar indevidamente pela prática de atos de ofício, de modo que se objetiva a tutela do normal funcionamento da administração, figurando como sujeito passivo do crime, o Estado. No que se refere ao momento consumativo, este corresponde ao da solicitação, aceitação ou recebimento da vantagem indevida. A tentativa é, de regra, inadmissível: ou o sujeito recebe ou aceita a vantagem, ou não a recebe ou a recusa.

No que toca à vantagem indevida, em que pese a discussão acerca de sua natureza, filiamo-nos à corrente de Magalhães Noronha[1] no sentido de que a vantagem pode ser de qualquer natureza: moral, material ou patrimonial, mesmo que possa ser obtida indiretamente. É a corrente majoritária.

Assim, a título de exemplo do crime de corrupção passiva, podemos citar o seguinte caso: o cidadão para em uma blitz, na qual um dos policiais aborda-o e constata que um dos faróis está queimado, de modo que solicita uma ajudinha para não lavrar a multa, solicita algum dinheiro em troca. Aqui, como se vê, perfectibilizou-se o crime de corrupção passiva.

Quanto à corrupção ativa, tem-se, também, que é um crime praticado contra a administração pública, todavia por particulares, tipificado no artigo 333 do Código Penal, com a seguinte descrição: “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo”. Ao contrário do crime anterior destrinchado, o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, independentemente de condição ou qualidade pessoal. Ressalte-se que nada impede que o sujeito ativo seja funcionário público, desde que não aja como tal, no exercício de suas funções ou em razão delas.[2]

No que respeita aos verbos que descreve as ações típicas, traz-se à baila (a) oferecer e (b) prometer. O tipo é misto alternativo. Quanto ao primeiro consubstancia-se em propor ou sugerir alguma dádiva, já quanto ao segundo, consubstancia-se em fazer promessa ou declarar que dará uma recompensa. Aqui, também, o objeto material é a concessão de alguma vantagem indevida pelo particular ao servidor público, para que este pratique, omita ou retarde ato de ofício, vantagem esta que pode ser, como dito, moral, material ou patrimonial.

A título de exemplo de corrupção passiva, podemos fazer referência à pessoa que é surpreendida, por policiais, conduzindo veículo sem habilitação e, no intuito de furtar-se da responsabilidade administrativa, oferece àqueles alguma vantagem indevida para não autuá-la. Aqui, de modo simples, configura-se o crime de corrupção ativa.

Nesse quadro, importa destacar que o ato de presentear funcionários com gratificações, por vezes como forma de agradecimento, caracteriza fato penalmente atípico. O Código Penal pune a outorga de vantagem para a realização de ato futuro, e não a concessão de dádivas como forma de gratidão por ato passado.

Avulta, aqui, redobrada atenção, porquanto em tais situações a obtenção de ganho, mesmo que subsequente ao ato, pode significar o cumprimento de uma promessa anterior, a confirmar a prática de corrupção, consumada, portanto, no momento em que a promessa fora feita. Quando a vantagem precede ao ato, existe a corrupção antecedente; quando lhe é posterior, corrupção subsequente.

Como se vê, diante das características expostas, principalmente em relação aos sujeitos ativos de cada crime analisado, percebe-se nuanças diferentes, apesar da semelhança do objeto material. Assim, esperamos ter traçado com clareza as diferenças entre os crimes de corrupção passiva e corrupção ativa, de modo a extirpar confusões incentivadas pelo senso comum.



[1] Noronha, Magalhães. Direito Penal. 38. ed. Saraiva: 2004. p. 260.
[2] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Volume 5. 6. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 332.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Publicação no site Ciências Criminais

http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/violacao-as-prerrogativas-e-o-tiro-no-direito-de-defesa/

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Waldir Troncoso Peres, um grande exemplo


Revista do Advogado nº 106

Homenagem ao Advogado Criminalista Waldir Troncoso Peres

Programa Jogo da Verdade – TV Cultura (1982)

Filho de Espanhóis emigrados no início do século, Waldir Troncoso Peres nasceu em Vargem Grande do Sul, interior de São Paulo, há 58 anos. Formado em 1946 pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, fez nesses 36 anos, do Direito Penal, dos Tribunais do Júri e da Criminologia suas opções de vida.

“Advogado Waldir Troncoso Peres, até que ponto pode ser profundo e honesto um jogo da verdade sobre o papel do advogado e a Justiça em nosso país?”
- Um problema visto do ângulo dos advogados não tem nenhuma restrição. Os advogados podem viver na plenitude da sinceridade, dizendo o que vai no seu coração, na sua alma, no seu espírito. E tudo o que eu afirmar aqui, certo ou errado, será o reflexo mais profundo das minhas reflexões recônditas e o eco do que está no meu espírito e no meu coração implantado com verdades definitivas.

“Waldir por ele mesmo”
- Se eu consegui algum resultado e algum sucesso na minha militância profissional no júri e fora do júri, eu atribuo isto exclusivamente a um predicado que eu me atribuo. Eu sou realmente um homem que me tenho na conta de um cidadão piedoso e indulgente, de maneira que eu entro em um processo de sintonia e de identidade com o meu cliente e luto por ele.
Tenho uma devoção e tenho um amor pela liberdade como supremo valor do homem, e tenho uma piedade pelo homem oprimido que me compele ao trabalho com uma tenacidade, com uma pertinácia, com uma estância quase que sagrada.
Tenho procurado ser, na proporção em que o advogado pode sê-lo, o mais sincero possível. Aqueles que acompanharam o desenrolar da minha vida profissional deverão ter verificado que eu procurei sempre, perante o tribunal popular, ou perante o juízo togado, ser o mais sincero e o mais autêntico possível, lutando na possibilidade daquilo que é factível.

“O Advogado Criminal”
- Meu velho e querido mestre, de quem eu tenho assim uma saudade imensa, o professor Soares de Melo quando era presidente do tribunal do júri, já dizia que o advogado criminal é um homem que tem que ter a sensibilidade para saber o nível de resultado que ele pode obter. Eu nunca pretendi na minha vida o absurdo. Eu nunca pleiteei uma absolvição inviável. Eu suponho que eu nunca tive contra mim um resultado de 7 a 0, porque ter um resultado de 7 a 0 implica necessariamente na postulação de uma tese inviável.

“O primeiro Júri”
- O primeiro júri, eu fiz... eu tinha por volta de 20 anos. Eu cursava o terceiro ano da faculdade de Direito. A essa altura, ser advogado criminal já era para mim uma compulsão. Me imantava a advocacia criminal; eu me sentia seduzido por ela; eu nunca tive dúvida vocacional. Então, voltando no tempo eu te digo: o primeiro homem que eu defendi na minha vida foi um trabalhador rural, foi um empregado da fazenda de meu pai. Foi um homem que levantava às 5 horas da manhã naquele tempo em que empregado rural era escravo e que dormia depois de o sol ter posto. Que pelo acaso ocasional das coisas, como diz o poeta português, matou um homem, que foi a júri em Casa Branca, que o júri absolveu, e que depois o tribunal condenou a 15 anos, porque naquele tempo nós vivíamos no regime da carta constitucional de 1937, no regime da ditadura, quando o júri não era soberano.

“O dom da Oratória”
- Eu não acredito que seja imanente a mim. Eu acho que ele é produto, se eu o tiver agora, de um longo adestramento. O grande (...), num trabalho que você deve ter lido, já dizia que o grande drama do advogado que se inicia da vida ou do homem que quer fazer o proselitismo é que ele tem que, primeiro, pensar no que vai dizer e, em segundo lugar, como vai dizer. E ele parte da premissa, num âmbito psicológico, de que duas ideias conscientes não ocupam um espírito humano ao mesmo tempo. Então enquanto o advogado tiver que pensar na substância e no mérito da causa, no que vai dizer e como vai dizer, é claro um déficit e um rebate de produtividade e de rendimento. Então um dos problemas básicos do advogado é claro que é a automatização da linguagem. A automatização da linguagem eu conquistei onde você a conquistou, como advogado da assistência judiciária, defendendo todos os réus pobres durante doze anos no Tribunal do Júri de São Paulo – espetáculo que eu tenho dito e tenho reiterado, instante da minha vida assim como um todo, que me traz uma imensa saudade porque eu me sentia, assim, socialmente muito útil, entre defender aquela pobreza e agora ser alugado pelos milionários eu acho até que dentro de uma dimensão humana eu já fui melhor do eu sou hoje. E foi defendendo esta pobreza com pertinácia dia e noite que talvez eu tenha obtido, eu tenha aprimorado, este automatismo da linguagem que hoje surge sem maior esforço como consequência meramente de um problema de ordem experimental. O “enunciar” e o “experimentar” têm uma relação de causalidade obviamente muito grande; e eu tenho um grande contingente de experiência.

“O direito de defesa”
- Está escrito na Constituição Federal, entre os direitos do homem, e os direitos do homem não são direitos do homem virtuoso; são direitos do homem enquanto suporte moral do direito e de todos os homens, todos os homens têm o direito de defesa. Esta abrangência é absoluta, é total e não tem nenhuma exceção. Ou se não você nega a carta de direitos do homem, ou se não você nega a Constituição da República Federativa do Brasil. Você nega aquilo que é imanente ao homem que é o direito de defesa.


“O chamamento”
- Quando um homem chega na minha idade, evidentemente ele começa a se conferir como cidadão. É claro que todo homem tem que ter um destino moral, se ele tiver um mínimo de consciência. A advocacia criminal para mim foi um chamamento, foi uma imantação, foi alguma, assim, que me seduziu. Eu sempre brinco dizendo que eu tenho, assim, a sensação de que a minha mãe me gerou num escritório de advocacia, que eu comecei a trabalhar muito cedo. Ela parece que foi a minha madrinha foi ela que me acalentou, foi ela que me carregou. Eu digo sempre que eu nasci nas fraldas da Mantiqueira – repito isto reiteradamente, e parece que as brisas das cumeadas me traziam, sim, a voz dos inconfidentes, desta extraordinária Minas Gerais, gritando pela liberdade. Então ela existiu em mim antes de ser alguma coisa que tivesse consistência ética e moral como destino de vida, ela nasceu em mim como um apelo interior.
Eu conversava outro dia com um médico de grande talento e ele me dizia assim: “olha, às vezes eu fico pensando nos modelos espirituais e eu imagino como um homem ficou pendurado uma existência inteira na Basílica de São Pedro, talhando uma imagem, modelando... o que será que ele pensou da vida, dependurado no teto de uma igreja?” Então aquilo deve ter sido para ele um apelo e um chamamento. Agora eu te respondo, quer dizer, ela que primeiro existiu em mim a nível emocional como compulsão, como um apelo, como vocação. Hoje eu aceito no plano ético. E ela me realiza; ela me dá uma contraprestação, ela me gratifica. Ela me dá um sentido de plenitude. Ela povoa o meu espírito. Ela é a minha razão de ser e de existir. Ela me alegra.

“O sacrifício do Advogado Criminal”
- O advogado criminal cavalga um sonho. Ele vive uma irrealidade. Eu tenho a sensação de que a advocacia criminal é, assim, uma abstração. Respondo a este moço, se ele pretender fazer a advocacia criminal ele saiba primeiro, antes de tudo, como premissa, que, o elemento, a força motriz deflagradora da conduta do advogado nunca foi o dinheiro, nem subsidiariamente. Nunca eu tive mais alento para defender um réu pobre do que um réu rico.
Pode fazer a mensuração e diz que eu tenho um testemunho longo da vida e todos dirão a mesma coisa. Não é o alimento espiritual do advogado criminal o dinheiro. O dinheiro nos dá um pouco de conforto, o direito de educar o filho, mas eu digo mais uma coisa: os homens menos ambiciosos a nível patrimonial são os advogados criminais.

“Atividade política e cargos públicos”
- E eu fui chamado muitas vezes... à atividade política. Fui convidado muitas vezes para a atividade política. Recusei-as sempre. Nunca me seduziu a política, de maneira em que quando me falam em cargo de secretário, a priori, eu já rejeito in limine, porque isto aqui é negar a minha vida. Eu já disse e repito que o homem que eu idolatro é o Dr. Dante Delmanto. Outro dia o vi caminhando pelas ruas se dirigindo para o seu escritório como faz todos os dias aos 75 anos, com vigor, com entusiasmo de alma extraordinária. E se o Senhor quiser me dar um bom fim de vida, que me dê uma vida assim; que me permita, até o fim da minha existência, ser advogado, exclusivamente advogado, e não secretário, até porque eu não gosto de ser secretário; “secretário” já é uma palavra que impões para mim uma subordinação que não é compatível com a minha forma de ser.

“A preparação para a defesa”
- Eu acho que cada um trabalha de uma maneira e de uma forma. Eu, depois de estudar o processo, depois de absorver a prova, depois de conhecê-lo na véspera do júri, eu prefiro, com franqueza, é pegar um livro de literatura um pouco mais ameno, para eu sair um pouco desta vida do “terra terra”, para eu ter mais capacidade ideativa, porque a lógica comportamental não é uma lógica formal e dedutiva. Então é preciso que você se entranhe e se inspire dentro de uma realidade humana. Eu, às vezes, brincando, digo talvez alguma coisa de que eu esteja convencido, saber direito não é cultura; direito é um instrumento de trabalho. O meu patrício Ortega y Gasset, com muita propriedade, no meu entendimento, dizia o seguinte: “um matemático, um físico, um químico e um jurista conhecem tanto da alma humana quanto um barbeiro suburbano”. Então conhecer o direito não é conhecer a alma humana, de maneira em que para poder transmitir o que seja um homem na sua falibilidade, na sua contingência, na sua fraqueza, e eu procuro, assim, uma inspiração literária – gosto muito de ler o Tagore, gosto muito de ler os poetas, gosto muito de entrar num processo de abstração, para eu não ficar neste “terra terra” porque o comportamento não está a nível desta mecânica primária, que é o fluxo do nosso pensamento cotidiano. Então eu procuro efetivamente conviver com os gênios para buscar com eles um pouco de inspiração.

“A despedida”
- Quero te dizer que eu vivi toda a minha infância na estrutura rural, no convívio com pessoas humildes. Quero te dizer que eu ainda trago dentro de mim, talvez certamente mercê de Deus, esta humildade de dizer a verdade e de viver com um pouco de autenticidade. Eu não vim aqui fraudar, não vim engodar, não vim mentir. Vim dizer o que eu penso, certo ou errado, mas autenticamente dizer o que vocês me rogam nesse programa. Porque se eu não viesse para dizer a verdade, eu não viria. Eu não atenderia ao seu chamamento. Eu me senti, assim, tão honrado de vir aqui num programa de ordem cultural como o seu, um programa que tem tanta divulgação, um humilde advogado que lutou pela vida, vindo do interior do estado para a capital, cujo único mérito foi a devoção à profissão que ele amou, que ele quis, pela qual ele teve, assim, um entusiasmo muito grande, de maneira em que você me propiciou uma noite, que apesar da minha humildade me envaidece muito e eu posso dizer, sinceramente, que eu falei a verdade a respeito do que eu penso, das coisas da vida, do mundo e da profissão.


Waldir Troncoso Peres
30/10/1923
12/04/2009

terça-feira, 6 de outubro de 2015

PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA



O princípio da insignificância cunhado pela primeira vez por Claus Roxin na década de 60 (BITTENCOURT, 2012, p. 55), traduz uma faceta da própria tipicidade penal, na qual exige-se uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o crime. De acordo com esse princípio é mister uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se se pretende punir e a severidade da intervenção estatal, pois, não raro, condutas se amoldam perfeitamente ao tipo penal, cumprindo seu papel formal, porém, quando analisadas sob o prisma material, carecem de relevância, devendo, de plano, a tipicidade penal ser afastada.
  

Assim, a partir da interpretação do mencionado princípio, é de fácil percepção que ele procura estar em harmonia com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria Penal, de modo que assume grande relevo na conjuntura dogmática penal, pois para além do positivismo:
Em nível jurisdicional, o princípio condiciona o juiz para além da obrigatória verificação da constitucionalidade do delito fabricado pelo legislador, conforme será verificado adiante, a descriminalizar comportamentos que, apesar de formalmente típicos, concretamente são inofensivos ao bem jurídico tutelado. Na irradiação desse comando, mais do que na intervenção mínima, esta voltada com ênfase para a intolerabilidade da conduta, a ofensividade tem como corolário o critério norteador interpretativo da insignificância, fundamental, por vezes, para aferição da tipicidade material. (LIMA, 2012, p.166 e 167).
           

Nessa linha, é em nível jurisdicional que o princípio vem ganhando força e forma, passando por interpretações desde os juízes de primeiro grau até chegar ao Egrégio Supremo Tribunal Federal, no qual traçou-se verdadeiro marco jurisprudencial com o Habeas Corpus 84.412, de São Paulo, julgado em 19 de outubro de 2004, com a relatoria do Ministro Celso de Mello, no qual foram expostos de forma analítica os fundamentos e os vetores para a aplicação do princípio da insignificância no crime de furto, cuja discussão é mais pulsante que em outros crimes. Por sua proeminência, transcreve-se a ementa:
PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL -CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE FURTO - CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE - "RES FURTIVA" NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. - O princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: "DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR". - O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.



Como se percebe, além do destaque do princípio, foram assentados 4 (quatro) vetores para a sua aplicação, quais sejam: (a) a mínima ofensividade da conduta do agente; (b) nenhuma periculosidade social da ação; (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Entretanto, diante dos inúmeros casos que chegam àquela Corte Suprema, os quais, invariavelmente, trazem circunstâncias diferentes, acrescentou-se mais dois requisitos, quais sejam: o agente não pode ser reincidente ou contumaz na prática da conduta e o crime não pode se tratar de furto qualificado.
          

Dessa forma, atualmente, apesar de discussão recente sobre o princípio da insignificância no julgamento conjunto de Habeas Corpus (HCs 123734, 123533 e 123108) no âmbito do Supremo Tribunal Federal, tal princípio ainda se encontra com vetores jurisprudencialmente traçados e sua aplicação continua a ser aferida caso a caso pelo juiz de primeira instância, sem que haja nenhuma imposição normativa de aplicação, senão interpretativa-jurisprudencial. 

Referências


BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, 1.17 ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.

LIMA, Alberto Jorge C. de  Barro. Direito penal constitucional: a imposição dos princípios constitucionais penais. São Paulo: Saraiva, 2012.