Revista do Advogado
nº 106
Homenagem ao Advogado
Criminalista Waldir Troncoso Peres
Programa Jogo da
Verdade – TV Cultura (1982)
Filho de Espanhóis emigrados no início do século, Waldir
Troncoso Peres nasceu em Vargem Grande do Sul, interior de São Paulo, há 58
anos. Formado em 1946 pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, fez
nesses 36 anos, do Direito Penal, dos Tribunais do Júri e da Criminologia suas
opções de vida.
“Advogado Waldir
Troncoso Peres, até que ponto pode ser profundo e honesto um jogo da verdade
sobre o papel do advogado e a Justiça em nosso país?”
- Um problema visto do ângulo dos advogados não tem nenhuma
restrição. Os advogados podem viver na plenitude da sinceridade, dizendo o que
vai no seu coração, na sua alma, no seu espírito. E tudo o que eu afirmar aqui,
certo ou errado, será o reflexo mais profundo das minhas reflexões recônditas e
o eco do que está no meu espírito e no meu coração implantado com verdades
definitivas.
“Waldir por ele
mesmo”
- Se eu consegui algum resultado e algum sucesso na minha
militância profissional no júri e fora do júri, eu atribuo isto exclusivamente
a um predicado que eu me atribuo. Eu sou realmente um homem que me tenho na
conta de um cidadão piedoso e indulgente, de maneira que eu entro em um
processo de sintonia e de identidade com o meu cliente e luto por ele.
Tenho uma devoção e tenho um amor pela liberdade como
supremo valor do homem, e tenho uma piedade pelo homem oprimido que me compele
ao trabalho com uma tenacidade, com uma pertinácia, com uma estância quase que
sagrada.
Tenho procurado ser, na proporção em que o advogado pode
sê-lo, o mais sincero possível. Aqueles que acompanharam o desenrolar da minha
vida profissional deverão ter verificado que eu procurei sempre, perante o tribunal
popular, ou perante o juízo togado, ser o mais sincero e o mais autêntico
possível, lutando na possibilidade daquilo que é factível.
“O Advogado Criminal”
- Meu velho e querido mestre, de quem eu tenho assim uma
saudade imensa, o professor Soares de Melo quando era presidente do tribunal do
júri, já dizia que o advogado criminal é um homem que tem que ter a
sensibilidade para saber o nível de resultado que ele pode obter. Eu nunca
pretendi na minha vida o absurdo. Eu nunca pleiteei uma absolvição inviável. Eu
suponho que eu nunca tive contra mim um resultado de 7 a 0, porque ter um
resultado de 7 a 0 implica necessariamente na postulação de uma tese inviável.
“O primeiro Júri”
- O primeiro júri, eu fiz... eu tinha por volta de 20 anos.
Eu cursava o terceiro ano da faculdade de Direito. A essa altura, ser advogado
criminal já era para mim uma compulsão. Me imantava a advocacia criminal; eu me
sentia seduzido por ela; eu nunca tive dúvida vocacional. Então, voltando no
tempo eu te digo: o primeiro homem que eu defendi na minha vida foi um
trabalhador rural, foi um empregado da fazenda de meu pai. Foi um homem que
levantava às 5 horas da manhã naquele tempo em que empregado rural era escravo
e que dormia depois de o sol ter posto. Que pelo acaso ocasional das coisas,
como diz o poeta português, matou um homem, que foi a júri em Casa Branca, que
o júri absolveu, e que depois o tribunal condenou a 15 anos, porque naquele
tempo nós vivíamos no regime da carta constitucional de 1937, no regime da
ditadura, quando o júri não era soberano.
“O dom da Oratória”
- Eu não acredito que seja imanente a mim. Eu acho que ele é
produto, se eu o tiver agora, de um longo adestramento. O grande (...), num
trabalho que você deve ter lido, já dizia que o grande drama do advogado que se
inicia da vida ou do homem que quer fazer o proselitismo é que ele tem que,
primeiro, pensar no que vai dizer e, em segundo lugar, como vai dizer. E ele
parte da premissa, num âmbito psicológico, de que duas ideias conscientes não
ocupam um espírito humano ao mesmo tempo. Então enquanto o advogado tiver que
pensar na substância e no mérito da causa, no que vai dizer e como vai dizer, é
claro um déficit e um rebate de produtividade e de rendimento. Então um dos
problemas básicos do advogado é claro que é a automatização da linguagem. A
automatização da linguagem eu conquistei onde você a conquistou, como advogado
da assistência judiciária, defendendo todos os réus pobres durante doze anos no
Tribunal do Júri de São Paulo – espetáculo que eu tenho dito e tenho reiterado,
instante da minha vida assim como um todo, que me traz uma imensa saudade
porque eu me sentia, assim, socialmente muito útil, entre defender aquela
pobreza e agora ser alugado pelos milionários eu acho até que dentro de uma
dimensão humana eu já fui melhor do eu sou hoje. E foi defendendo esta pobreza
com pertinácia dia e noite que talvez eu tenha obtido, eu tenha aprimorado,
este automatismo da linguagem que hoje surge sem maior esforço como
consequência meramente de um problema de ordem experimental. O “enunciar” e o
“experimentar” têm uma relação de causalidade obviamente muito grande; e eu
tenho um grande contingente de experiência.
“O direito de defesa”
- Está escrito na Constituição Federal, entre os direitos do
homem, e os direitos do homem não são direitos do homem virtuoso; são direitos
do homem enquanto suporte moral do direito e de todos os homens, todos os
homens têm o direito de defesa. Esta abrangência é absoluta, é total e não tem
nenhuma exceção. Ou se não você nega a carta de direitos do homem, ou se não
você nega a Constituição da República Federativa do Brasil. Você nega aquilo
que é imanente ao homem que é o direito de defesa.
“O chamamento”
- Quando um homem chega na minha idade, evidentemente ele
começa a se conferir como cidadão. É claro que todo homem tem que ter um
destino moral, se ele tiver um mínimo de consciência. A advocacia criminal para
mim foi um chamamento, foi uma imantação, foi alguma, assim, que me seduziu. Eu
sempre brinco dizendo que eu tenho, assim, a sensação de que a minha mãe me
gerou num escritório de advocacia, que eu comecei a trabalhar muito cedo. Ela
parece que foi a minha madrinha foi ela que me acalentou, foi ela que me
carregou. Eu digo sempre que eu nasci nas fraldas da Mantiqueira – repito isto
reiteradamente, e parece que as brisas das cumeadas me traziam, sim, a voz dos
inconfidentes, desta extraordinária Minas Gerais, gritando pela liberdade.
Então ela existiu em mim antes de ser alguma coisa que tivesse consistência
ética e moral como destino de vida, ela nasceu em mim como um apelo interior.
Eu conversava outro dia com um médico de grande talento e
ele me dizia assim: “olha, às vezes eu fico pensando nos modelos espirituais e
eu imagino como um homem ficou pendurado uma existência inteira na Basílica de
São Pedro, talhando uma imagem, modelando... o que será que ele pensou da vida,
dependurado no teto de uma igreja?” Então aquilo deve ter sido para ele um
apelo e um chamamento. Agora eu te respondo, quer dizer, ela que primeiro existiu
em mim a nível emocional como compulsão, como um apelo, como vocação. Hoje eu
aceito no plano ético. E ela me realiza; ela me dá uma contraprestação, ela me
gratifica. Ela me dá um sentido de plenitude. Ela povoa o meu espírito. Ela é a
minha razão de ser e de existir. Ela me alegra.
“O sacrifício do
Advogado Criminal”
- O advogado criminal cavalga um sonho. Ele vive uma
irrealidade. Eu tenho a sensação de que a advocacia criminal é, assim, uma
abstração. Respondo a este moço, se ele pretender fazer a advocacia criminal
ele saiba primeiro, antes de tudo, como premissa, que, o elemento, a força
motriz deflagradora da conduta do advogado nunca foi o dinheiro, nem
subsidiariamente. Nunca eu tive mais alento para defender um réu pobre do que
um réu rico.
Pode fazer a mensuração e diz que eu tenho um testemunho
longo da vida e todos dirão a mesma coisa. Não é o alimento espiritual do
advogado criminal o dinheiro. O dinheiro nos dá um pouco de conforto, o direito
de educar o filho, mas eu digo mais uma coisa: os homens menos ambiciosos a
nível patrimonial são os advogados criminais.
“Atividade política e
cargos públicos”
- E eu fui chamado muitas vezes... à atividade política. Fui
convidado muitas vezes para a atividade política. Recusei-as sempre. Nunca me
seduziu a política, de maneira em que quando me falam em cargo de secretário, a
priori, eu já rejeito in limine, porque isto aqui é negar a minha vida. Eu já
disse e repito que o homem que eu idolatro é o Dr. Dante Delmanto. Outro dia o
vi caminhando pelas ruas se dirigindo para o seu escritório como faz todos os
dias aos 75 anos, com vigor, com entusiasmo de alma extraordinária. E se o
Senhor quiser me dar um bom fim de vida, que me dê uma vida assim; que me
permita, até o fim da minha existência, ser advogado, exclusivamente advogado,
e não secretário, até porque eu não gosto de ser secretário; “secretário” já é
uma palavra que impões para mim uma subordinação que não é compatível com a
minha forma de ser.
“A preparação para a
defesa”
- Eu acho que cada um trabalha de uma maneira e de uma
forma. Eu, depois de estudar o processo, depois de absorver a prova, depois de
conhecê-lo na véspera do júri, eu prefiro, com franqueza, é pegar um livro de
literatura um pouco mais ameno, para eu sair um pouco desta vida do “terra
terra”, para eu ter mais capacidade ideativa, porque a lógica comportamental
não é uma lógica formal e dedutiva. Então é preciso que você se entranhe e se
inspire dentro de uma realidade humana. Eu, às vezes, brincando, digo talvez
alguma coisa de que eu esteja convencido, saber direito não é cultura; direito
é um instrumento de trabalho. O meu patrício Ortega y Gasset, com muita
propriedade, no meu entendimento, dizia o seguinte: “um matemático, um físico,
um químico e um jurista conhecem tanto da alma humana quanto um barbeiro
suburbano”. Então conhecer o direito não é conhecer a alma humana, de maneira
em que para poder transmitir o que seja um homem na sua falibilidade, na sua
contingência, na sua fraqueza, e eu procuro, assim, uma inspiração literária –
gosto muito de ler o Tagore, gosto muito de ler os poetas, gosto muito de
entrar num processo de abstração, para eu não ficar neste “terra terra” porque
o comportamento não está a nível desta mecânica primária, que é o fluxo do
nosso pensamento cotidiano. Então eu procuro efetivamente conviver com os
gênios para buscar com eles um pouco de inspiração.
“A despedida”
- Quero te dizer que eu vivi toda a minha infância na
estrutura rural, no convívio com pessoas humildes. Quero te dizer que eu ainda
trago dentro de mim, talvez certamente mercê de Deus, esta humildade de dizer a
verdade e de viver com um pouco de autenticidade. Eu não vim aqui fraudar, não
vim engodar, não vim mentir. Vim dizer o que eu penso, certo ou errado, mas
autenticamente dizer o que vocês me rogam nesse programa. Porque se eu não
viesse para dizer a verdade, eu não viria. Eu não atenderia ao seu chamamento.
Eu me senti, assim, tão honrado de vir aqui num programa de ordem cultural como
o seu, um programa que tem tanta divulgação, um humilde advogado que lutou pela
vida, vindo do interior do estado para a capital, cujo único mérito foi a devoção
à profissão que ele amou, que ele quis, pela qual ele teve, assim, um
entusiasmo muito grande, de maneira em que você me propiciou uma noite, que
apesar da minha humildade me envaidece muito e eu posso dizer, sinceramente,
que eu falei a verdade a respeito do que eu penso, das coisas da vida, do mundo
e da profissão.
Waldir Troncoso Peres
30/10/1923
12/04/2009
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