terça-feira, 15 de setembro de 2015

A DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO PENAL




Em um primeiro plano, faz-se mister trazer que há duas concepções diferentes sobre o ônus da prova no processo penal, nas quais, a primeira, a bem da verdade, se respalda em raízes estritamente civilistas, alegando que o ônus da prova é dividido entre a defesa e a acusação. Já a segunda visão entende que o ônus da prova é todo da acusação, de modo que é necessário compatibilizá-lo com o postulado da presunção de inocência. A primeira visão é a dominante. A segunda é a qual este estudo filia-se. Far-se-á uma análise das duas correntes.

Atinente à corrente da divisão de cargas no processo penal, faz-se necessário remontar às raízes civilistas do ônus da prova, as quais, inegavelmente, influenciaram nas regras de distribuição da carga probatória no processo penal pátrio, precipuamente porque a doutrina processual penal sobre o ônus da prova, muitas vezes fez apenas uma simples transposição da distinção entre fatos constitutivos, impeditivos e modificativos do direito, a qual foi elaborada pelos doutrinadores processualistas civis (BADARÓ, 2003, p. 258).

Assim, o Código de Processo Civil (CPC), em seu artigo 333[1], dispõe sobre o ônus da prova de modo expresso, aduzindo que cabe ao autor provar os fatos constitutivos de seu direito e, ao réu, eventuais fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito que o autor alega possuir.

A partir da leitura do artigo acima, exsurge a interpretação de que aquele que vem ao órgão jurisdicional com uma pretensão de assegurar algum direito, deverá provar as suas condições de constituição, sem presumir-se a sua existência, ou seja, deverá provar em que se funda aquela pretensão deduzida em juízo, constituindo o direito que alega lhe caber, de modo que, as condições anormais, ou seja, as condições que tenham o condão de derruir ou modificar o direito aventado pelo autor devem ser provadas pelo réu, incumbindo-lhe esse ônus.

Nota-se que esta distribuição é levada a efeito conforme a posição processual que a parte assume. Se ela está no polo ativo compete-lhe provar, como dito, o fato constitutivo de seu pretenso direito. Caso esteja no polo passivo, compete-lhe apenas provar fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito alegado pelo autor (TALAMINI, 2011, p. 506). Desse modo, nessa órbita, mais especificamente acerca de cada fato disposto no artigo 333 do CPC, merece ser trazido à baila a objetiva lição de Gustavo Henrique Badaró:
Fatos constitutivos são aqueles que têm a eficácia jurídica de fazer nascer, de constituir, uma relação jurídica. São fatos que dão o vida ao direito. O ônus da prova dos fatos constitutivos incumbe ao autor. Fatos modificativos ou extintivos são fatos que operam em um momento posterior à constituição da relação jurídica, tendo a força de modificar a eficácia jurídica já produzida por essa relação ou determinar a sua extinção. O ônus da prova dos fatos modificativos e extintivos incumbe ao réu. Por fim, os fatos impeditivos são aqueles cuja essência é necessária para a eficácia jurídica dos fatos constitutivos e cujo concurso impede a produção de seus efeitos. Os fatos impeditivos quando comprovados impedem que o fato constitutivo produza o efeito que lhe é normal ou próprio, que constitui a sua razão de ser. Também para os fatos impeditivos o ônus da prova é do réu. (BADARÓ, 2003, p. 247 e 248).

Ora, entendidas as regras acima explicitadas, é fácil perceber que tanto no processo civil quanto no processo penal, deverá partir-se da premissa de que é sobre a parte que alega um direito que irá recair a incumbência de demonstrar a existência do fato que alega existir, de modo que cabe trazer na íntegra o disposto no artigo 156 do CPP, o qual, apesar de não trazer em seu bojo uma observância patente ao direito material, em muito não se difere do critério adotado pelo legislador processual civil, ao preconizar o seguinte:
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I - ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; (Acrescentado pela L-011.690-2008)
II - determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.

Avulta, no mencionado dispositivo, que a regra concernente ao onus probandi, ao encargo de provar, é regida pelo princípio actori incumbit probatio ou onus probandi incubit ei qui asserit, ou seja, deve incumbir-se da prova o autor da tese levantada, não diferindo, o caput do dispositivo supracitado da essência do ônus da prova no processo civil.

Logo, à luz da legislação processual civil, cabe à acusação demonstrar: existência do fato imputado e sua autoria, a tipicidade da conduta, os elementos subjetivos de dolo ou culpa, a existência de circunstâncias agravantes e qualificadoras. De outro lado, quando o réu aventar qualquer excludente de ilicitude ou culpabilidade, por serem consideradas fatos impeditivos, capazes de obstar a eficácia do direito de punir estatal, estas devem ser provadas pelo acusado (BADARÓ, 2003, p. 258).

A segunda concepção, por outro lado, preconiza que não há uma verdadeira distribuição de provas dentro do processo penal pátrio, isto é, não há cargas probatórias impostas ao acusado, precipuamente quando se está diante de um processo penal acusatório sob a égide do princípio da presunção de inocência. Essa corrente, para tanto, faz uma interpretação constitucional do artigo 156 do CPP, preconizando que está totalmente na mão do acusador provar o fato típico, ilícito e culpável com todas as suas circunstâncias[2].

Nesse estudo, avulta-se que deve prevalecer essa concepção, na medida em que o réu nada tem a provar, sua única incumbência dentro de um processo penal dito acusatório é de opor-se à pretensão acusatória. É a acusação, o Ministério Público, que deve provar o que alegou. Não podendo, diante da temerária situação de extirpação do convívio social, que, em regra, é o poder repressivo estatal, simplesmente remontar-se ao Direito Processual Civil, o qual, como dito alhures, em regra, trata-se de instrumento para garantia de direitos disponíveis, sob pena de levar a efeito uma regra de julgamento à revelia da presunção de inocência.

A corroborar o exposto acima, insta transcrever o entendimento de Carl Josef Anton Mittermaier:

As analogias do processo civil ainda fizeram considerar as justificações dadas pelo acusado, com relação a circunstâncias de fato a si favoráveis, como verdadeiras exceções, cuja prova lhe incumbe. Porém é este um dos raciocínios mais falsos e perigosos. A confusão que a este respeito reina no direito civil, encontramo-la no direito criminal, sempre que para aí passa um tal princípio; e assim como no primeiro tentou-se classificar sob diversas denominações as exceções que o réu pode apresentar, assim também os antigos criminalistas trataram da exceção álibi e da exceção culpa; e, se nos modernos tempos caíram em desuso estas denominações, não deixou de substituir em alguns espíritos a opinião de que, em matéria de exceção (se, por exemplo, alega-se o caso de legítima defesa, etc., etc.), a prova compete ao acusado. Ora, embora restrita a um pequeno número de casos, esta opinião é insustentável com referência ao processo criminal; e, especialmente aplicada à confissão parcial (qualificada), tem produzido grandes inconvenientes. (MITTERMAIER, 1997, p.124).

Nessa visão, é justamente essa a regra de julgamento que deve o juiz seguir: se a acusação tem o dever (note-se bem: dever, não “faculdade”) de provar que o réu cometeu um fato típico, ilícito e culpável, não pode o juiz, diante destas afirmações propulsoras da ação penal, atribuir ao famigerado acusado o encargo de provar quando este ventilar alguma causa impeditiva, modificativa ou extintiva da pretensão acusatória, haja vista que é presumidamente inocente e não há carga probatória alguma, apenas devendo gerar uma dúvida razoável para ser absolvido.

Como se percebe, ao afirmar que o ônus da prova é todo da acusação, estar-se-á trabalhando com premissas compatíveis com os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, de modo que, ainda, é de todo oportuno externar que apesar de não haver ônus probatório imposto ao acusado, nada lhe impede que possa produzir provas, principalmente porque é inegável que existe um interesse do acusado em demonstrar sua inocência, mas este apenas assume o risco de não produzir provas nesse sentido, não podendo, diante do exposto, que suas alegações com o intento de derruir a acusação sejam afastadas sob o argumento que não foram produzidas provas nesse sentido (BADARÓ, 2003, p. 301).

Desta maneira, inexorável a conclusão de que a acusação, consoante a segunda concepção delineada, a qual filia-se esse trabalho, é que deve provar um fato típico, ilícito e culpável, com todas as suas circunstâncias relevantes, de maneira que ao réu cabe apenas opor-se à pretensão acusatória, precipuamente porque é parte hipossuficiente dentro do processo penal, haja vista que enfrenta o rolo compressor Estatal, que o quer ver sujeito ao seu aparato de persecução penal, de modo que o artigo 156 do Código de Processo Penal encontra-se, em muito, equivocado, haja vista sua raiz estritamente civilista, à revelia dos postulados constitucionais que pautam o processo penal pátrio.

Referências:


BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. 

MITTERMAIER, C.J.A. Tratado da Prova em Matéria Criminal. 3.ed., 2.tir. Tradução de Herbert Wüntzel Heinrich, São Paulo: Bookseller, 1997. 

TALAMINI, Eduardo. Wambier, Luiz Rodrigues. Curso Avançado de Processo Civil, volume 1. 12 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.






[1] Art. 333 - O ônus da prova incumbe:         
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;          
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
[2] A maioria do doutrinadores sustenta que para que se possa falar em crime é preciso que o agente tenha praticado uma ação típica, ilícita e culpável. É a teoria tripartida de crime. Assim, o delito é uma conduta humana individualizada mediante um dispositivo legal que revela a sua proibição, que por não estar permitida por nenhum preceito jurídico é contrária ao ordenamento jurídico e que, por ser exigível do auto que atuasse de outra maneira nessa circunstância, lhe é reprovável. ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999. p. 342).

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